étant donnés

tradução

My Funny Valentine: Étant donnés

Quando se caminha em direção à obra Étant donnés de Marcel Duchamp no Museu da Filadélfia, caminha-se ao longo de uma grande sala onde a obra de Paul Cézanne Le Grandes Baigneuses, 1906, encontra-se diretamente à frente. Apesar de todo seu status de ícone, trata-se de uma tela bizarra. Sua escala é monstruosa, não muito adequada ao seu assunto ostensivo: nus brincando em uma paisagem pastoral. Os nus (ou podemos chamá-los de mulheres?) proliferam sentados e em pé; eles inclinam-se uns sobre os outros como as árvores que dobram-se ao vento, formando como um parênteses ao redor das bordas da pintura, que permanecem estranhamente, mas decididamente, vazias. O vazio sugere que algo sobre a idéia desta pintura afetou Cézanne como sendo algo potencialmente ridículo. É como se ele soubesse que tudo estava perdido: mulheres nuas na paisagem? Será? Em 1906?

Ao virar à direita depois de Cézanne, caminha-se ao longo da sala abobadada, e o modernismo se abre à sua frente. Vamos encarar a verdade, o Museu da Filadélfia tem uma das maiores coleções de arte moderna dos EUA: Arthur Dove, Man Ray, Constantin Brancusi. Esta mostra de obras de vanguarda que chegaram a um impasse, termina na galeria 183, a sala que contém a última e mais trabalhosa obra de Duchamp.

Étant donnés está instalada sozinha em uma sala sem iluminação e forrada com um carpete de sisal. Você se aproxima de um par de portas de madeira pesadas, desgastadas pelo tempo, portas levemente inclinadas para dentro, deixando espaço para os pés enquanto abaixa-se um pouco a cabeça para espiar pelos dois buracos situados levemente abaixo do nível dos olhos. Ao olhar através destes, vê-se uma mulher nua em uma paisagem banhada por uma luz quente e brilhante.

Mas eu avancei um pouco mais. Do outro lado das portas existe um muro de tijolos com um buraco irregular que atravessa a parede. E é através desta segunda abertura que se percebe a mise-en-scène: um manequim de mulher sem cabeça, colocada sobre uma pilha de galhos e folhas mortas, pernas estranhamente abertas, a vagina curiosamente deslocada em direção à coxa esquerda, o braço esquerdo aberto e elevando em relação ao corpo, a mão esquerda segurando um lampião. O fundo é um exercício de kitsch pastoral, obrigatoriamente contendo, árvores no horizonte, nuvens, céu azul, um lago e uma cachoeira. A queda d’água é simulada por uma luz piscando que parece feita com brilho adquirido em lojas populares. Este é o único movimento no quadro, ele brilha imitando o brilho do lampião. Embora tanto a cachoeira quanto o lampião estejam incluídos no título completo da obra Étant donnés: 1º la chute d’eau, 2º le gaz d’éclairage…, nenhum deles é a fonte de luz que ilumina a paisagem, o corpo esparramado e a parede de tijolos.

Os principiantes sempre afastam-se chocados. Aqueles que já estiveram lá antes ficam relutantes, intrigados. Do que se trata esta imagem? Pode-se sequer chamar isto de uma imagem? O que significa? Como foi feita? É possível que Duchamp tenha produzido, ao final de tudo, um diorama? Por que o grande defensor da obra anti-retiniana, o inventor do ready-made, o progenitor da arte conceitual e da crítica às instituições, fez isto?

Étant donnés tem sido um grande mistério durante anos. Instalada em 1969 no Museu da Filadélfia, foi imediatamente submetida à uma moratória fotográfica: depois de numerosas tentativas de captar ou filmar a obra, os curadores da época decidiram não autorizar fotos da obra, pois concluíram que nenhum registro era capaz de dar conta da complexidade visual e física da obra. Um dos efeitos desta decisão foi que a recepção da obra, tanto por artistas quanto por curadores, tenha sido lenta, sujeita aos rumores de quem viu o que e quando. Finalmente, esta iconoclastia contemporânea deixou que a obra ficasse suspensa como o ar: crucial mas não percebida. Mesmo quando a proibição foi suspensa e imagens do trabalho passaram a circular, as pessoas permaneceram quietas – citando Benjamin H. D. Buchloh, na introdução de uma edição especial da revista October de 1994, dedicada à Duchamp, ao dizer, lamentando-se: “o quase silêncio absoluto que rodeia o enigma escondido na Filadélfia.”

Este silêncio pode agora ser quebrado graças ao empreendimento da recente e extraordinária exposição “Marcel Duchamp: Étant donnés”. Organizada pelo curador do Museu da Filadélfia, Michael R. Taylor, a exposição – que marcou os quarenta anos de instalação da obra no museu – veio ao mesmo tempo atrasada e a calhar, trazendo-nos mais perto do que nunca da mais reticente obra de arte. Foram agrupados todos os documentos disponíveis, desenhos, objetos relacionados ao trabalho, muitos dos quais desconhecidos pelo público, resgatados da coleção de museus ou das mãos da família do artista, onde estavam por décadas. O catálogo, indispensável e lindamente escrito, enquanto coloca luz em interpretações críticas, delineia a produção e recepção do Étant donnés em exaustivos e fascinantes detalhes, assim como reproduz uma passagem crucial nas correspondências pessoais de Duchamp. O efeito combinado da exposição e do catálogo não apenas coloca os registros em ordem; torna possível uma nova conversa.

Quando o assunto é o Étant donnés, eu também fiz parte da multidão calada, embora o trabalho tenha me perseguido por anos. A primeira vez que o vi foi na adolescência em uma viagem à Filadélfia com minha mãe e minha melhor amiga do colegial. Retornei lá com frequência durante minha dissertação sobre os ready-mades de Duchamp (embora na versão final não tenha mencionado a obra!) e mais tarde fiquei obcecada por ele enquanto trabalhava em uma exposição de escultura contemporânea do pós-guerra, feitas na tradição dos famosos objetos eróticos de Duchamp dos anos 50. No catálogo da exposição “Part Object, Part Sculpture” (2005), os moldes do Étant donnés lançam uma sombra difusa em todo o projeto; no entanto, eu ainda não conseguia encará-lo de frente. A exposição e o catálogo de Taylor me permitiram encarar o que andava me desencaminhando e me perturbando ao longo dos últimos anos.

O que mais me perturbou foi o fato de que, evidentemente, eu não estava suficientemente perturbada. Em outras palavras, nunca achei Étant donnés “ofensivo” ou “chocante”. Como feminista, listei muitas críticas violentas e irascíveis contra este (para muito espectadores, trata-se de uma cena após um estupro ou um assassinato), mas nunca fui realmente capaz de articular porque não o achava anti-feminista ou misógino. Certamente, eu era capaz de reproduzir os argumentos de Jean-François Lyotard sobre a conexão do voyeurismo patriarcal com o desenvolvimento da perspectiva, resultando no aforismo imortal “Conta quem vê”. Também estava familiarizada com leituras sobre o trabalho que levavam em conta a matriz do desejo lacaniano; aqui a figura central é vista como castrada, e o espectador está envolvido neste abismo da falta. Então estava moderadamente convencida da natureza duplamente transgressiva do trabalho, seu posicionamento simultâneo do espectador como “essencialmente carnal”, como Rosalind Krauss enfatizou, e na insistência da representação em si. (Não é uma mulher, mas a escultura de uma mulher!) Mas, para ser sincera, secretamente sempre achei tais argumentos, com sua insistência na equação primária “desejo + olhar = voyeurismo” , um pouco acadêmicos demais. O radicalismo intenso de Étant donnés, na verdade seu mistério consumado, pareciam aludir a tais formulações. Tendo dito isso, eu compartilhava o sentimento de que a radicalidade do trabalho provinha da evocação do desejo – desejo pela arte, pelos corpos, pelas imagens, pelo sexo. Ainda assim, para além deste truísmo artístico-histórico, meus pensamentos e sentimentos permaneciam insipientes, principalmente quando me colocava diante dele.

“Is your mouth a little weak? When you open it to speak, are you smart?…”

ALGUNS FATOS: Entre alguns materiais antes desconhecidos e revelados pela exposição está uma série de fotografias em preto-e-branco do Étant donnés instalado no atelier de Duchamp da rua 11, em Manhattan, não muito antes de sua morte em 1968. Elas foram tiradas por Denise Hare, a artista fotógrafa e retratista, a pedido da viúva de Duchamp, Teeny, antecipando a trabalhosa desmontagem do trabalho, peça por peça, para a transferência e instalação no Museu da Filadélfia. (Foi a segunda vez que o trabalho foi desmontado em menos de cinco anos. Duchamp havia transportado-o de seu antigo atelier de longa data na rua 14 em 1965, vítima da alta nos alugueis.) As fotos são limpas e de caráter modernista, mantendo uma distância respeitosa mesmo sabendo que estava abrindo um grande segredo de Duchamp. Elas mostram o atelier de Duchamp, o colecionador de dejetos, de fragmentos das lojas de materiais de construção, de cadeiras velhas, e nos mostram o Étant donnés como um aparato improvisado: vemos a plaina, os panos, o emaranhado de fios elétricos, as luzes, os motores, os ventiladores. Vemos também a peruca da figura sem cabeça, a assinatura de Duchamp no braço direito do corpo (até hoje, escondida de vista), e o atelier “vazio” com sua porta secreta. Isto mesmo, uma porta secreta. Duchamp recebia visitas e estas saíam sem saber nada de seu projeto de vinte anos, pois todo trabalho ficava escondido atrás deste porta.

Alguns fatos mais:  Duchamp – que em 1921 declarou ter largado as artes para dedicar-se ao jogo de xadrez e que, em 1961 disse pensar que o artista do futuro teria de “ir aos subterrâneos” – trabalhou no Étant donnés entre 1946 e 1966. Durante estes anos, ele deixou que apenas duas pessoas soubessem de sua existência: sua amante, a artista brasileira Maria Martins e, depois que esta relação terminou, sua esposa, Teeny. Alguns trabalhos relacionados ao Étant donnés foram de encontro ao público nos anos 50, mas sem nenhuma indicação de que estivessem relacionados ao projeto clandestino. Destes, os mais conhecidos eram os objetos eróticos: Feuille de vigne femelle, 1950; Object-dard, 1951; e Coin de chasteté, 1954, os quais foram todos copiados em pequenas edições de bronze e reproduzidos em catálogos assim como exibidos nos anos 50’s e 60’s. Coin de chasteté, uma base rosa chiclete com uma cunha cor de cobre inserida sobre ela, foi dada a Teeny como presente de casamento. Quando a cunha é levantada, um interior rosa choque, semelhante à cor da vagina, é revelado. De acordo com Duchamp, Teeny costumava carregá-lo quando eles viajavam, levando-o a sugerir que era como um “anel de noivado”.  Feuille de vigne femelle parece o molde de uma vagina feminina e foi originalmente dada de presente à Man Ray  para que este pudesse reproduzir múltiplos com o intuito de ganhar o tão necessário dinheiro. Object-dard é talvez a mais curioso dos três, ao mesmo tempo fálico e escatológico, estranhamente vulgar e inanimado.


Uma vez que Étant donnés estava finalizado em 1966, um grupo seleto de altos curadores e patronos do Museu da Filadélfia foram autorizados a vê-lo com o intuito de assegurar de que seria aceito na coleção permanente e ainda garantir que o trabalho estaria sempre exposta ao público no museu, o qual possui a maior coleção de trabalhos do Duchamp, incluindo a obra anterior e crucial O Grande Vidro, 1915-23. O trabalho foi instalado, os quinze anos de moratória fotográfica foi instituído, e a galeria 183 foi aberta. Uma vez revelado ao público, tornou-se claro que Feuille de vigne femelle e Object-dard eram subprodutos da modelagem da figura principal. Coin de chasteté – que tecnicamente não é um subproduto de Étant donnés mas, dada a maneira como ele transita ludicamente entre o erotismo e o segredo, trata-se de um trabalho satélite – por outro lado, permaneceu um mistério restrito. (A primeira foto dele aberto está no catálogo da exposição “Part Objet, Part Sculpture”).

“Your looks are laughable, unphotographable…”

ASSIM COMO AS FOTOS DE HARE expuseram algumas das propriedades físicas do trabalho no atelier – uma série menos evocativa feita por Duchamp para seu meticuloso manual de instrução e assemblage de 1965 também o fizeram – a presença na exposição de objetos até então desconhecidos quase que literalmente completou as peças do quebra-cabeça. Entre eles estão moldes de uma mão segurando o lampião, fragmentos de corpos trabalhados, uma variedade de desenhos preparatórios, e um maravilhoso modelo do trabalho em papel cartão visando a sua instalação no Museu da Filadélfia. O catálogo continua o processo de revelação não só pelas reproduções das fotos de Hare e Duchamp mas também pelas cartas para M. Martins, datadas de 1946 a 1952, precisamente o período em que ele estava trabalhando no grande manequim. As cartas são do tipo amante desamparado (por favor me escreva) e de um artista consumido, rememorando seu trabalho no atelier. De vez em quando, são apimentadas com revelações do temperamento levemente melancólico de Duchamp: “O outono é silencioso e bonito aqui mas ao mesmo tempo tem um ar funesto, como todos os outonos bonitos – algo como um funeral relaxante das coisas”.

Uma das características que persistem sobre o que se conhece de Duchamp é que ele era um exemplo de indiferença tanto nas relações estéticas quanto nas pessoais. Mas este discurso também contradiz uma outra característica central de seu caráter. Ele teve três grandes relações românticas em sua vida: um caso que durou algumas décadas com a encadernadora e expatriada da América, Mary Reynolds (ela ajudou a Resistência Francesa durante a guerra), um caso breve com Martins e, mais à frente em sua vida, o casamento, que pelo o que se sabe foi extremamente feliz, com Teeny. Estes relacionamentos não se sobrepuseram, embora Duchamp tenha mantido uma troca de correspondências e amizade com Reynolds e Martins mesmo depois do fim das relações. Na verdade, ele viajou para Paris para estar ao lado de Reynolds quanto ela estava morrendo de câncer. Duchamp era tudo menos desleal.

Pela maneira com Taylor mostra a fabricação do trabalho, aprendemos pela primeira vez que, depois da morte de Reynolds seu irmão providenciou um testamento para Duchamp que deu-lhe dinheiro suficiente para viver modestamente sem precisar trabalhar; além do mais, Taylor conjectura que o uso do pergaminho por Duchamp para moldar a figura feminina foi graças à influência do trabalho de Reynolds como encadernadora. Também descobrimos que a figura foi moldada à partir do corpo de Martins e que o cabelo original na manequim era castanho (como os de Martins) e que foi trocado por louro depois do casamento com Teeny (cujo cabelos eram louros). Finalmente, aprendemos que em um verão muito quente em Nova York a mão que segurava o lampião derreteu e caiu. O estrago não podia ser arrumado, então foi decidido que seria substituído por um molde feito à partir do braço de Teeny. No entanto, o braço de Teeny era maior do que o de Martins, uma discrepância que contribui para a estranheza da figura, uma desconjuntura semelhante à Ingres. Cada novo pedaço de informação, é claro, aprofunda nosso conhecimento sobre o Étant donnés, mas são estes mesmos detalhes, acima de tudo, que me parecem, finalmente, desvendar os mistérios do grande segredo de Duchamp.

“Don’t change a hair for me, not if you care for me…”

CERTAMENTE, minhas convicções antigas sobre o Étant donnés como sendo, de alguma forma, “sobre” o desejo colocando-o em um continuum com o Grande Vidro e com um conhecimento comum na história da arte de toda a obra de Duchamp como sendo “sobre” o desejo; nada de novo a acrescentar. Com esta exposição eu senti que finalmente podia delinear, de uma maneira significativa, a estatura ou a qualidade deste desejo. Na verdade, a exposição me fez dar conta de que esta penúria esfarrapada dos estudos sobre Duchamp (os meus inclusive), nos quais a conversa sobre o desejo é sempre genérica (seja este capitalista ou lacaniano) e nunca aproxima o problema da especificidade do desejo. É somente agora que podemos ver que, “a mulher com a vagina exposta” (de uma carta de Duchamp à Martins) é de fato um complicado composto de três pessoas: Reynolds (o pergaminho e o dinheiro para poder trabalhar), Martins (o molde original e a intervenção) e Teeny (o braço esquerdo, o cabelo e a cor da pele). A figura é literalmente uma fusão de dois corpos, um trabalho como um todo é um palimpsesto e um testemunho dos três relacionamentos profundos.

Uma interpretação: Eu acho que Étant donnés seja sobre o amor e o desejo, o tipo de amor que se tem por uma pessoa com a qual você está em uma relação de desejo. A natureza da composição do trabalho me sugere que a nossa capacidade para o amor é infinita; não é uma emoção da qual nos livramos ou nos enfastiamos. Certamente ela pode desbotar, e muitas vezes ela o faz. Mas sua possibilidade de re-emergir é contínua e sempre presente. Étant donnés nos apresenta com uma perplexidade, mas não aquela que é comumente percebida. Sua pergunta não é, Como fazemos uma imagem do nosso infinito e insaciável desejo? mas, Como expressamos o nosso desejo quando este está intimamente ligado com a qualidade infinita do amor? Como articulamos a tensão entre a essencialmente carnal e a natureza claramente existencial do nexo entre amor e desejo? Por que nossa relação não é o desejo em si mas o outro como ele é? A imobilidade de Étant donnés, sua insistência de que seja visto sob seus próprios termos, é o começo da resposta. Propõe que o amor e o desejo não são portáteis, disponíveis para serem carregados por aí segundo a nossa ou a minha vontade. Pelo contrário, o trabalho torna espacial o fato de que quando se está envolvido no amor e no desejo é preciso acessar o outro em seus próprios termos. O termo de Duchamp é literalmente nos colocar no lugar; o trabalho me segura à uma distância, e estou permanentemente inclinando meu pescoço para ver atrás da parede de tijolos, apenas para me encontrar, estranhamente olhando para os meus próprios sapatos. E não é desta maneira mesmo que as coisas acontecem? Por mais que tentamos “entender” o outro (nosso amor), acabamos caindo em um looping narcísico, falando sobre nós mesmos quando deveríamos estar escutando.

Étant donnés nos oferece um encontro com o outro mas deixando claro que não podemos conhecê-lo. Permaneceremos eternamente separados. Seu silêncio é composto da nossa inabilidade de recordá-lo acuradamente, que é como leio o problema da vagina deslocada – uma materialização das distorções da memória. Não só o trabalho é impossível de ser fotografado, também não pode ser reproduzido nos olhos da mente. Tendemos a lembrar o primeiro encontro de uma maneira genérica e não com detalhes típicos de quem olhou de maneira prolongada. Verdade seja dita, olhar por um longo tempo é difícil, pois estamos sempre preocupados de estarmos sendo vistos por outros na galeria. Esta é sempre uma ironia notável do trabalho – ao invés de olharmos para ela somos conscientes de que estamos sendo olhados. No contexto desta exposição, eu estava mais consciente do que nunca de que estava sendo muito egoísta “tomando tanto tempo”. Estava plenamente consciente de que enquanto estava olhando pelo buraco, alguém mais não poderia estar, e esta condição de um de cada vez é análoga à estrutura monogâmica do casal, no qual apenas uma pessoa pode ocupar seu coração de cada vez. E ser um casal está na raiz da questão, pois não importa o quão chocante ou radical seja o Étant donnés, este também sugere que nunca estamos realmente livres das convenções sociais de tais arranjos amorosos, sejam as convenções da relação de amantes (Martins era casada quando ela e Duchamp tornaram-se amantes) ou do casamento – da mesma forma que não podemos nos libertar de certos arranjos pictóricos, seja a perspectiva ou a paisagem kitsch de pano de fundo.

Em Étant donnés não existe completude apenas encontros. Neste sentido, não é tanto que o trabalho seja chocante (por exemplo de uma forma pornográfica), mas um desmanche, nos termos de Leo Bersani. Como Bersani diz em O Corpo Freudiano: “A sexualidade humana é constituída por uma psique desmanchada, como uma ameaça à estabilidade e integridade do self – uma ameaça que apenas o aspecto masoquista do prazer sexual nos permite sobreviver.” Mais interpretação: Penso que Étant donnés é uma tentativa de criar uma experiência estética de desmanche que é semelhante à alienação do self que encontramos quando caímos no espaço-tempo continuum do amor e do desejo. Étant donnés tenta articular como nos arranjamos em relação ao desejo pelo outro. Aqui entra a parte do amor. Quando falamos de desejo, facilmente falamos de objetos, pois o desejo é altamente materializável. Quando falamos de amor estamos discutindo a radical interface de, pelo menos, dois sujeitos. Penso que com Étant donnés estamos bem distantes do trocadilho bem humorado do trabalho mais juvenil e mais antigo de Duchamp. Estamos profundamente inseridos no mundo adulto – no momento em que amor e desejo estão interligados, num momento em que nosso objeto de desejo complica-se na ética do amor.

A sensibilidade do trabalho é obscura. O corpo está sobre galhos e folhas mortas, e por mais parecida que a manequim seja, ela também está morta. O espectador é colocado vendo através de um buraco na porta. Embora ache que Étant donnés seja sobre amor e desejo (e sua existência enquanto um casal), também acho que produza um tipo de tensão e ambivalência análoga a regra do casamento da esperança do amor eterno e a verdade irrefutável da morte. Afinal Coin de chasteté coloca isso plenamente à vista, estabelecendo tanto o laço do casamento quanto a mentira da omissão. O segredo estava estabelecido: Os casais sabem aquilo que outros de fora não sabem, mas entre um casal também devem haver segredos que não devem ser revelados. O título do trabalho começa com Dados, como uma prova matemática – ele começa com algo irrefutável, o aspecto do problema que não pode ser resolvido e sim deve ser aceito, como se aceita um fundamento. Amor e desejo são dados; o arranjo que fazemos dele é o desafio. As implicações feministas do trabalho podem estar presentes quando acreditamos que amor e a relação de desejo com o outro constituem um encontro radical com o self – e não, como freqüentemente pensamos, uma complemento do self – e assim estamos assumindo a falta de controle e autoridade. A suposta violência do trabalho é para lembrar que quando perdemos o controle e a autoridade corremos um maior risco de sermos marcados ou machucados – se voltamos para a mise-en-scène, seremos marcados por ela, da mesma forma que deixaremos nossas marcas nela, como deixamos nossas marcas sobre a madeira da porta, um registro indelével, um palimpsesto que registra nossa presença ali.

Ao caminhar para trás, ao tomar distancia do Étant donnés, nada mais parece o mesmo. Vê-se as esculturas de Jasper Johns em vitrines, maravilhosas caixas de Cornell, e a cortina de flores de Jim Hodges, e todos estes trabalhos carregam o peso deste encontro com o Étant donnés, com o dado de nossa solidão e a qualidade funesta do nosso amor e desejo. A única piada em Étant donnés pode estar no gênero do nu e da paisagem, enquanto uma ruptura do arranjo convencional patriarcal da mulher como subserviente ao homem, alegoria, estética (apenas assinale isso), abertamente destruída por Cézanne, e completada por Duchamp. Se em Cézanne vemos uma crise na fé do artista de maneira tão sistemática, em Étant donnés, um trabalho nascido do amor e do desejo, completado lentamente, em segredo, e com comprometimento, vemos o grande dilema e o prazer do desmanche presentes naquele que é sujeito do amor e do desejo. O espectador pode ver que o segredo foi desvendado e que a tarefa em mãos é não mais produzir imagens do amor e do desejo, mas tornar nossa capacidade para estes sentimentos cada vez mais complicadas e infinitas.

“Each day is Valentine’s Day…”

Helen Molesworth para Artforum.

2 comentários sobre “étant donnés

  1. É incrível como a arte pode nos surpreender sempre!
    Por mais tempo que tenha se passado após a execução e apresentação de uma obra, há sempre uma surpresa e um novo modo de visão para o espectador.
    Talvez por isso mesmo seja uma “ARTE”.

  2. Esta obra de Duchamp é um verdadeiro exemplo para a Semiótica. De tempos em tempos volta a ser assunto. Está se atualizando sempre! Certamente Duchamp, como bom jogador que era, estaria esperando o nosso próximo movimento. Quem sabe foi esta a intenção dele ao nos presentear, mesmo depois da sua morte, com obra de tamanha grandeza.
    Duchamp nos entrega este “Jardim do Éden”, o Paraíso, de onde nos olha para enxergar nossa própria vergonha, nossa própria nudez. Duchamp percorre todo o caminho de volta ao começo.
    Sim, criar nos faz existir! Ele será sempre imortal, todos os dias, cada vez que espiamos pela fresta para enxergar o que ele nos deixou para ver.
    AMEI O TEXTO! AMO ESTA OBRA! APRENDI COM BATAILLE QUE “O EROTISMO FAZ DO homem UM SER HUMANO!
    Duchamp só está tentando nos mostrar a nossa humanidade!

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